Translate

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A importância da demanda e o software público

Henry Ford foi uma das grandes referências do mundo empresarial no processo de industrialização. Sua notabilidade ocorreu tanto pelos seus erros quanto pelos acertos. Um de seus erros clássicos foi dizer que venderia os seus carros “em qualquer cor desde que eles fossem pretos”. Ford menosprezou o papel da demanda e foi obrigado a reconsiderar sua posição.

No decorrer do processo industrial a demanda – nos primórdios apenas batizada como vendas – começou a ser reconhecida como um importante elo na cadeia de produção, saindo da visão do “eu produzo do meu jeito” para “o jeito de quem vai escolher”.

Com o passar do tempo a demanda mudou algumas vezes sua roupagem e foi rebatizada, sendo um dos mais recentes a denominação cliente. Assim, aos poucos, se cristalizou a reconhecida frase: “o cliente sempre tem razão”.

O fato de ter razão não significa que esteja sempre correto ou que consiga exercer a sua pressão de escolha. Muitas vezes a razão do cliente pode ser acompanhada, subjetivamente, de um comportamento egoísta, vaidoso ou de manipulação de interesse.

Já a ausência da pressão de escolha pode ser observada por diversos motivos: desconhecimento, incapacidade ou até o monopólio do mercado. Percebe-se que alguns atributos são inerentes às capacidades do próprio cliente e os outros se relacionam às suas interações com o mercado, como o caso de uma oferta monopolista.

O lado da demanda

Isto significa que o cliente precisa perceber de imediato a sua importância para exercer o seu peso como “o lado da demanda”, já que uma parte da relação comercial depende da decisão dele próprio. Mas para fazê-lo é necessário reconhecer primeiro os atributos do ambiente em que convive, considerando as características de um determinado bem ou serviço. Algo que exige do cliente conhecimento do mercado em que se inseriu.

Ao acompanhar as transições históricas, torna-se simples aferir a importância da demanda em qualquer estrutura de produção – mesmo em épocas pré-industriais. Foi assim para os fenícios, os árabes e os grandes navegadores, quando buscaram expandir em outras terras seus horizontes comerciais. Eles vislumbravam novos demandantes e oportunidades mercantis.

Atualmente, uma das principais referências do software livre, Richard Stallman, reforça sempre em suas palestras que o modelo de licença por ele criado – base do software livre – serve para aumentar o nível de pressão da demanda. Cabe frisar que o “livre” abordado neste artigo vem da liberdade de acesso ao código, e não de gratuidade.

A diferença fundamental entre os bens comercializados até o final do século passado e aqueles que se tornaram mais valorados nestes últimos dez anos é a “tangibilidade” ou “intangibilidade” do bem. E justamente esta diferença é que influencia e exige muito um novo comportamento para a demanda.

Uma das grandes vantagens que o modelo do software livre proporciona aos seus usuários é a possibilidade da demanda estabelecer o seu poder, e este pode manifestar-se de várias formas: a escolha do fornecedor, o volume do aporte financeiro, o peso de uma ação consorciada. Mas será que o cliente sabe explorar tal capacidade?

Cadeia de produção

A demanda, ao optar por não explorar seu poder potencial, torna frágil a possibilidade de manter a sustentabilidade da cadeia de produção e, consequentemente, amplia mais sua fragilidade ao fortalecer a relação de dependência com algum fornecedor. Ou seja, a demanda transfere para a oferta ou o prestador de serviço a sustentabilidade da cadeia produtiva. Isto gera uma subordinação direta aos interesses de quem oferta e do prestador.

O resultado dessa “deixada” implica que a incorporação de um código relaciona-se muito mais com as intenções da oferta e/ou da prestação de serviço do que com aquele que contratou algum nível de desenvolvimento do código.

Existem duas lógicas que tem prejudicado sobremaneira essa cadeia. A primeira é que o fato de obter gratuitamente o código impõe involuntariamente que o ônus do desenvolvimento recaia sobre o desenvolvedor original (a oferta). O segundo que, ao procurar por um prestador de serviço, a demanda deixa que a empresa contratada escolha o que pode ser feito com o resultado do trabalho.

Sem dúvida os dois problemas acima podem ser considerados os maiores dilemas enfrentados pelo software livre hoje. Como o modelo do software público usa as mesmas premissas do livre, analogamente, ele sofre com o mesmo problema.

Mas esse comportamento da demanda não se justifica. Na verdade ela sofre com a herança das formas tradicionais de contratação de software, onde a demanda acredita que o desenvolvedor original – oferta – e/ou a empresa prestadora de serviço sejam capazes de manterem sozinhos a solução, já que desenvolveram o código ou ganharam dinheiro para tal finalidade.

Mudança de comportamento

Justamente na pressão da escolha que precisamos de ações mais contundentes, um movimento de conscientização e de mudança de comportamento. A disponibilização de um ambiente público para ofertar os códigos auxilia de maneira contundente a demanda a exercer sua pressão. Neste caso, ela tem a possibilidade de realizar um contrato qualquer e definir o que será feito com uma parte ou com o resultado total da contratação.

Mas a mudança mental da demanda não é trivial. Alguém imaginaria em contratar um serviço para resolver um problema interno da empresa que também poderá resolver o problema de uma outra organização? Certamente, uma decisão bem diferente do que estamos acostumados. Mas esse é o papel que a demanda precisa assumir sem “peso na consciência”.

Qual a vantagem? Algo chamado de ciclo virtuoso. Uma contratação surge para incrementar funcionalidades em cima do que já foi desenvolvido. Esse diferencial – corretivo ou evolutivo – se incorpora ao produto, e assim sucessivamente. O novo papel da demanda pode fortalecer a economia de uma forma inimaginável.

Obviamente, nem todas as contratações deverão se orientar pela lógica virtuosa. As questões de segurança, de sigilo e de inteligência do negócio não seguem tal regra, mas reconhecidamente essa é uma pequena parcela do que se contrata no mercado de software.

Software público

E como o software público pode ajudar neste novo papel da demanda? O termo público em sua origem grega significa aquilo que é de todos. Objetivamente, aquele que contrata um serviço “X” pode oferecer o resultado para todo o ecossistema sem carregar a preocupação de que poderá ocorrer alguma apropriação exclusiva ou abusiva.

Assim um próximo contratante poderá gerar com maior segurança outros benefícios com base na contratação “X” anterior. Ao mesmo tempo, todos os usuários terão acesso a esses benefícios e qualquer prestador de serviço será agraciado pelas novas funcionalidades e poderá ofertá-las aos seus clientes.

O lado da oferta, no caso o desenvolvedor de software, há tempos já optou em oferecer o código com licenças mais permissivas (abertas e livres). Agora a demanda precisa assumir o seu papel de movimentar a roda do ciclo virtuoso de produção.

Ainda temos um longo caminho a percorrer. Existe o costume da demanda adquirir algo e dizer: – o meu celular, o meu carro e, lógico, o meu software. A mudança implica na conversão do modelo mental para investir no nosso software. Ao fazê-lo, o demandante assume um papel inovador: com base na relação contratual, beneficiar a todos da comunidade, fortalecer o ecossistema de um software e criar um ciclo econômico virtuoso.

Essas transformações vão ocorrer de forma natural, influenciadas pelo avanço da venda de serviços para software, pela longevidade dos ganhos comerciais e não-comerciais e pelo modelo de produção colaborativa em rede. O desafio é superar a naturalidade dessa transição e acelerar os processos de contratação inovadores, auxiliando a demanda – no caso o contratante – a assumir o seu novo papel.
Fonte:http://computerworld.uol.com.br/blog/governanca/2010/06/30/a-importancia-da-demanda-e-o-software-publico/

Nenhum comentário:

Postar um comentário