Translate

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Como se forma a memória, artigo de Fernando Reinach

"Se a ideia é educar crianças para lidar com a informação e utilizar o conhecimento de maneira critica e criativa a repetição exaustiva não é a melhor forma de educar"

Fernando Reinach é biólogo. Artigo publicado no jornal "O Estado de SP":



Entre o Oiapoque e o Chuí existem centenas de marcos geográficos que demarcam a fronteira brasileira. Um amigo dos meus pais os recitava de memória. Eu fui obrigado a decorar a tabuada, o que não ocorreu com meus filhos. Nas últimas décadas a memorização de novos conhecimentos por meio da repetição exaustiva caiu em desuso.



Em parte isto se deve aos novos métodos pedagógicos que valorizam a capacidade de utilizar o conhecimento ao invés de sua simples memorização. Mas uma polêmica nos meios científicos sobre a melhor maneira de criar memórias de longo prazo também contribuiu para o ocaso da tabuada.



A teoria clássica afirmava que a repetição exata de um estímulo era a melhor forma de memorizá-lo. A nova teoria propunha que memórias mais duradouras eram formadas quando o estímulo contendo a informação era apresentado em diferentes formas a cada repetição.



Na teoria clássica a melhor maneira de memorizar a tabuada era repetir cada frase centenas de vezes. Na nova teoria o aluno deveria ser submetido a uma série de repetições nas quais o contexto da informação mudasse a cada repetição. A memorização seria mais eficiente pois o conhecimento ficaria "ancorado" em diversos pontos da memória. Agora, analisando diretamente a atividade cerebral à medida que a memória é formada, os cientistas descobriram como as memórias mais duráveis são formadas.



Os testes foram feitos em 24 voluntários. A cabeça da pessoa era colocada dentro de uma máquina de ressonância magnética capaz de medir a atividade de cada região do cérebro a cada instante. É como se a máquina estivesse filmando que parte do cérebro está ativa ou inativa a cada segundo.



Com a máquina na cabeça, os voluntários observavam uma tela de computador e eram instruídos a memorizar 120 fotos de faces de pessoas. Cada face era apresentada três vezes misturada aleatoriamente às outras faces.



Dada esta combinação, cada voluntário examinava um total de 360 faces enquanto a maquina de ressonância registrava a atividade cerebral. Desta maneira foi possível registrar a atividade cerebral de cada voluntário para cada uma das três vezes em que ele foi apresentado a cada uma das 120 faces.



Uma hora depois de terminada esta parte do experimento o voluntário voltava para o laboratório para tentar identificar as faces que havia memorizado. Nesta segunda etapa, feita sem o aparelho na cabeça, era apresentada a uma sequência de 240 faces sendo que 120 eram novas e 120 eram as mesmas que ele havia observado com a máquina na cabeça. Para cada uma destas 240 faces ele deveria dar uma nota de 1 a 6 dependendo do grau de certeza que a face já havia sido observada na primeira parte do experimento.



Feito isso os cientistas selecionaram, entre as faces apresentadas na primeira parte do experimento, as que as pessoas tinham certeza que se lembravam (nota 5 e 6) e as que elas seguramente haviam visto mas não se lembravam (nota 1 e 2).



Sabendo quais faces haviam sido memorizadas e quais haviam sido esquecidas os cientistas examinaram a atividade cerebral do voluntário enquanto estava olhando faces memorizadas ou esquecidas. O objetivo era tentar descobrir que atividades cerebrais eram indicativas de que a memória estava se formando de forma eficiente.



A comparação da atividade cerebral de um voluntário enquanto examina duas faces distintas é pouco informativa. Já se sabe que diferentes faces provocam diferentes reações e consequentemente diferentes atividades cerebrais.



Enquanto uma face pode provocar reações do tipo "ela é parecida com minha avó Zica" outra face pode provocar reações do tipo "nunca vi um homem tão triste" e é claro que a atividade cerebral que gera estes pensamentos é diferente. Foi por este motivo que os cientistas compararam a atividade do cérebro nas três vezes que a mesma face foi apresentada ao voluntário, tanto no caso das faces memorizadas quanto no caso das faces esquecidas.



Quando esta comparação foi feita em centenas de faces lembradas ou esquecidas pelos 24 voluntários ficou clara uma diferença entre as faces lembradas e as esquecidas. No caso das faces lembradas, a atividade cerebral era semelhante nas três vezes em que a pessoa observava a mesma face.



No caso das faces esquecidas cada vez que a pessoa observava a face a atividade cerebral era diferente. Isto demonstra que a formação eficiente de memória ocorre quando o padrão de atividade cerebral se repete perfeitamente cada vez que o estímulo é apresentado.



Este tipo de experimento foi repetido usando palavras escritas e sons em vez de faces, confirmando que formação eficiente de memória ocorre quando o estímulo é capaz de provocar reações idênticas em nosso cérebro, e comprovando a teoria clássica do processo de memorização.



É por isso que um grupo de crianças forçadas a recitar em voz alta todo dia um poema ou a tabuada acaba memorizando a informação para o resto da vida e um advogado, 50 anos depois de sair da escola, ainda é capaz de listar os rios e montanhas do Oiapoque ao Chuí.



Portanto, se o objetivo é simplesmente memorizar algo, a repetição exata é a solução preferida, mas se a ideia é educar crianças para lidar com a informação e utilizar o conhecimento de maneira critica e criativa a repetição exaustiva não é a melhor forma de educar. A arte está em combinar estas duas atividades.
Fonte:http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=74500

Nenhum comentário:

Postar um comentário