Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
Você lembra o número do telefone de seu dentista? Onde estão suas músicas preferidas? E a história de seu país? Essas informações estão fora de seu corpo, talvez no seu telefone celular, nos CDs e nos livros que enchem as estantes.
Estamos tão acostumados a guardar, buscar e utilizar informações armazenadas em instrumentos de memória extracorpórea que é quase impossível imaginar como seria nossa existência sem essas tecnologias. Mas a realidade é que, durante a maior parte da existência do Homo sapiens, o único instrumento de que dispúnhamos para armazenar informação era nossa memória e a memória de nossos conhecidos.
O processo de acúmulo de informações surgiu quando nossos ancestrais começaram a se comunicar, talvez 1 milhão de anos atrás. Antes, a informação acumulada por uma pessoa desaparecia com sua morte.
O que para nós é difícil de compreender é que durante 995 mil desses últimos 1 milhão de anos toda a informação acumulada por nossa espécie estava armazenada exclusivamente em nossa própria memória. Não havia instrumentos de memória extracorpórea, a escrita não tinha sido inventada. Os desenhos e outras formas de arte, apesar de úteis, são incapazes de estocar muita informação. Faz menos de 5 mil anos que aprendemos a escrever e aos poucos pudemos retirar de nossa memória parte da responsabilidade de estocar a informação coletada pela humanidade. Surgiram os livros, depois os discos e os computadores.
É quase impossível imaginar como foi nossa relação com a memória cerebral durante centenas de milhares de anos. Imagine um mundo onde qualquer informação esquecida não pudesse ser recuperada. Foi neste ambiente que nosso cérebro evoluiu e foi moldado pelo processo de seleção natural. A educação de um indivíduo obrigatoriamente passava pela tarefa de memorizar as informações acumuladas por seus antepassados. As histórias, as músicas, os alimentos, como caçar e como tratar doenças. Cada indivíduo, antes de se considerar educado, deveria memorizar todas estas informações. Educar era antes de tudo lembrar.
Com o desenvolvimento da escrita, as tradições orais foram colocadas no papel e cuidadosamente replicadas. Mas só muito recentemente a prensa de Gutenberg se espalhou pela Europa e os livros puderam chegar a grande parte da população. Foi nesta época de transição, entre o uso exclusivo da memória e a introdução dos instrumentos de memória extracorpóreos, que surgiram as escolas. A disponibilidade da informação nesses instrumentos ainda era limitada e a educação tinha como objetivo "copiar" no cérebro de cada indivíduo grande parte da informação acumulada pela humanidade. Mas, enquanto esse sistema de ensino se espalhava e as crianças estavam memorizando acidentes geográficos, por exemplo, o aprimoramento dos mecanismos de memória extracorpórea permitiu que a quantidade de informação acumulada crescesse exponencialmente.
Nosso sistema de educação estava condenado ao fracasso antes de poder se espalhar. Hoje é impossível ensinar ou aprender tudo o que a humanidade sabe. Os anos de estudo se prolongam e a quantidade de informação a ser ensinada se multiplica. A especialização, grande esperança do século 20, inibe a criatividade, condena as pessoas a viverem em um microcosmo e acirra conflitos entre habitantes de cada microcosmo. São agricultores que não entendem o ecossistema, ecologistas que não entendem a evolução. E, pior, pessoas que não sabem aprender fora da escola.
Talvez seja a hora de pensar numa mudança radical no processo de educação. Ele não deve ter como objetivo copiar a informação para nosso cérebro. Da mesma maneira que deixamos de decorar o número do telefone do dentista, o objetivo da educação deveria ser capacitar as pessoas a explorar, capturar, selecionar, julgar e utilizar as informações acumuladas nos mecanismos de memória extracorpórea. Deveríamos também ensinar as pessoas a organizar, sistematizar e depositar informações nesses mecanismos extracorpóreos, tanto individualmente quanto coletivamente. As informações utilizadas durante o ensino seriam somente exemplos que permitiriam aos alunos aprender a navegar pelo mar de informações. Aos 21 anos deixaríamos para sempre o ambiente escolar, cada jovem diferente de todos os outros, mas todos capazes de estudar e aprender durante o resto da vida.
BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES: LIVRO "MOON WALKING WITH EINSTEIN. THE ART AND SCIENCE OF REMEMBERING EVERYTHING", DE JOSHUA FOER. THE PENGUIN PRESS, 2011 (FERNANDO@REINACH.COM)
FONTE:http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110602/not_imp726921,0.php
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