Entrevista de Jacob Palis, presidente da ABC, a paginas amarelas da revista Veja (15 a 21 de maio).
A frente da Academia Brasileira de Ciências, um dos grandes matemáticos do País diz que é preciso livrar-se do espírito conservador para estar entre as nações mais avançadas.
Aos 71 anos, o matemático Jacob Palis figura entre os brasileiros de maior projeção na comunidade científica internacional. Pelo conjunto de sua obra acadêmica, ele recebeu, em 2010, o Prêmio Balzan, uma das mais prestigiadas honras conferidas a pesquisadores. Palis foi também um dos mentores da reforma que fez do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, um dos melhores centros de pesquisa do mundo nesse campo do conhecimento. Na década em que o instituto esteve sob o seu comando, entre 1993 e 2003, passou a atrair cérebros, do Brasil e do exterior, por meio de bons salários e de um sistema ancorado na meritocracia - algo que Palis defende com veemência. Atualmente, ele está debruçado sobre outro problema, cuja resolução é premente para o País produzir inovação e avançar: a necessidade de despertar, ainda na infância, o gosto pela ciência. Trata-se de uma área em que os estudantes brasileiros estão entre os piores. "Os talentos científicos devem ser lapidados desde muito cedo", diz ele, na seguinte entrevista que concedeu a Veja.
Formaram-se 12 mil doutores no Brasil no ano passado. O País precisa de mais cientistas?
Sem dúvida. Esse problema se manifesta de forma mais aguda nas ciências exatas, justamente de onde deveria estar saindo mais gente para produzir tecnologia e inovação. A situação da matemática é ilustrativa. Todo ano, formam-se no Brasil algo como 150 doutores na área. É a metade do que precisamos. Para se ter uma ideia, isso não dá para preencher as vagas de professor nas universidades, tampouco aquelas oferecidas pelo setor privado, que se expandem à medida que a economia avança. Há escassez de matemáticos para tarefas tão distintas quanto traçar o perfil financeiro de um cliente ou aprimorar o desempenho que do país na extração do petróleo, uma questão central. Mas atenção: quando afirmo que o Brasil precisa dobrar seu número de doutores na área, refiro-me, evidentemente, àqueles de elevado padrão intelectual, capazes de fazer diferença no panorama não só brasileiro, mas mundial. E crucial para a nação. Existe uma correlação direta entre base científica sólida e desenvolvimento econômico.
Qual é a dimensão de nosso atraso científico em comparação aos países mais desenvolvidos?
Europeus e americanos descobriram séculos atrás o valor da ciência, algo que os brasileiros só recentemente começaram a perceber. Pode-se dizer que os países mais desenvolvidos foram moldados por esse DNA. Neles, a elite sempre reconheceu a importância da escola e da propagação do conhecimento, o que a motivou, no decorrer do tempo, a doar grandes somas de dinheiro a instituições de ensino. Com base nas últimas décadas, dá para afirmar que o Brasil avançou de modo relevante, formando pesquisadores de alto gabarito em diversas áreas. Só que ainda precisa despir-se de certo conservadorismo para acelerar o passo. Em nome dele, condena-se, por exemplo, a ideia de premiar os mais talentosos, esforçados e produtivos. Cenário que não é propício para a retenção das melhores mentes no meio acadêmico. Basta olhar para outros países que caminham em direção inversa.
O que o Brasil pode depreender da experiência internacional?
Há muito que aprender com os chineses, que levam boje o conceito do mérito às últimas consequências. Para atrair de volta ao país os milhares de cérebros que seguiam carreira em universidades americanas e europeias, o governo passou a lhes fazer propostas agressivas. Eles chegam a ganhar o dobro ou até o triplo que a média do restante dos cientistas e trabalham em laboratórios de altíssimo nível São valorizados de tal forma que foram alçados à condição de celebridades. Quando saem às ruas de Xangai ou Pequim, dão até autógrafo. Curiosamente daqui, não existe nenhum problema com a ideia de que vizinhos de mesa recebam salários diferentes.
Em proporção ao PIB, a China destina 40% mais que o Brasil à área de pesquisa e desenvolvimento Falta de dinheiro é um problema essencial?
Existe um consenso de que, se não investirmos mais fortemente, ficaremos para trás. Hoje, 1,2% do PIB brasileiro é reservado à pesquisa. Gente do governo federal tem dito que dá para chegar a 1,8% nos próximos quatro anos. De todo modo, nosso desafio não se limita a expandir o orçamento, mas deve contemplar, sobretudo, a racionalização nos gastos do dinheiro já disponível. Repito: é premente que se rompa de vez na academia brasileira com o velho espírito napoleônico, segundo o qual a igualdade deve prevalecer sobre a meritocracia. É preciso também tornar a estrutura das universidades menos rígida - outro de nossos obstáculos históricos.
Como exatamente essa rigidez nas universidades brasileiras atrapalha?
Com a estrutura engessada das instituições públicas, é muito difícil, se não impossível, contratar os cérebros que lideram a produção científica mundial. Sofri com isso quando ocupei o cargo de diretor do Impa. Por mais de uma vez, estive diante de estrangeiros, com notório destaque na comunidade acadêmica mundial, interessados em trabalhar no instituto. Só que não conseguia empregá-los em razão do excesso de burocracia imposta pelas regras do funcionalismo público. Um pesadelo para alguém que, como eu, sempre soube que era preciso atrair os mais talentosos para fazer pesquisa de primeira linha. Hoje, o Impa tem status de organização social, o que lhe confere uma flexibilidade maior para fazer contratações e representou um passo importante para nossa atividade. As universidades americanas são extremamente eficientes quanto a esse aspecto e, por tal motivo também, figuram no topo dos rankings da excelência. Quanto mais barreiras houver para atrair e reter cérebros, tanto pior será nossa produção científica.
Há outros obstáculos no Brasil para atrair os melhores cientistas?
As universidades públicas brasileiras cultivam o conceito da auto proteção. Nas nações mais desenvolvidas da Europa e nos Estados Unidos, valoriza-se ao máximo a internacionalização. Não importa a nacionalidade do cientista, basta que ele esteja entre os melhores para ser cobiçado. Aqui, as instituições de ensino acham que os estrangeiros vão ocupar o lugar dos brasileiros. Por isso, praticamente há uma espécie de reserva de mercado. Para se ter uma ideia, elas exigem que os estrangeiros interessados em trabalhar no país prestem concurso e façam a seleção em português - regra que frequentemente tira do páreo gente de altíssima qualidade, uma vez que nosso idioma é pouco difundido. Muito melhor seria que estabelecessem um prazo para que esses candidatos aprendessem a língua, no lugar de simplesmente expeli-los. Afinal de contas, o idioma universal da ciência é o inglês.
O Brasil já oferece salários competitivos na área de pesquisa?
Àqueles cientistas que atuam nos níveis mais elevados, sim. Poderíamos, portanto, importar mais talentos - mas, em lugar disso, deixamo-nos paralisar por uma modalidade de protecionismo improdutiva
Por que o Brasil ainda responde por apenas 0,1% da produção mundial de patentes?
A ideia de que as ciências devem agregar valor à indústria, que já se disseminou nos países mais ricos há décadas, ainda é muito recente no Brasil. Na realidade, até pouco tempo atrás nossa produção científica era modesta, feita por alguns raros heróis que se aventuravam por aí sem contar com infraestrutura nem estímulos concretos. Emergimos de um quadro de completa precariedade, sem muitos pesquisadores nem estudos relevantes. Não havia uma mentalidade voltada para a inovação. A produção científica conectada ao mercado é uma etapa da evolução que só agora passa a habitar a preocupação dos brasileiros.
Em que medida isso é um obstáculo ao crescimento brasileiro?
O frágil elo entre produção científica e indústria ajuda a entender o fato de o Brasil exportar até hoje, basicamente, produtos agrícolas ou minerais. Em vez disso, chineses ou coreanos transformam tais mercadorias em algo de valor bem maior. A conexão entre academia e indústria é fundamental para mudar esse cenário. É dessa relação que surgem as grandes inovações. Trata-se de um caminho de duas mãos, vantajoso para o mercado e para o próprio universo acadêmico, que passa a descortinar novos rumos para o avanço do conhecimento. Os brasileiros estão progredindo nesse quesito, mas ainda há muito que percorrer. Desatar esse nó de uma vez é inadiável, um desafio que precisa ser enfrentado com a disciplina e a persistência já vistas em outros países até mais pobres.
A Coreia do Sul fez uma revolução em todos os níveis de ensino em quatro décadas. Por que no Brasil o processo tem sido tão mais lento?
O grande mérito da Coreia foi traçar um plano bastante objetivo para a educação, enxergando décadas à frente, sem jamais abandonar suas metas. Planejamento de longo prazo é algo que o Brasil não está habituado a fazer por uma questão cultural e também econômica. Vivíamos sob uma inflação elevadíssima, sem saber o valor ou mesmo o nome que nossa moeda teria no mês seguinte. É preciso que se entenda de uma vez por todas que a evolução do ensino e das ciências depende de políticas de estado, e não de governos, que mudam ao sabor das transições de poder. A Coreia compreendeu bem a lição e soube criar vigorosos e competitivos centros de produção do conhecimento.
Em um recente levantamento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os estudantes brasileiros aparecem entre os piores do mundo em matemática e ciências. Como mudar esse quadro?
Não há outro caminho senão atrair os alunos mais brilhantes para as faculdades de ciências exatas, realidade da qual o Brasil está ainda distante. A caça a esses talentos deve começar desde muito cedo, nas primeiras séries escolares, quando já é possível incentivar o raciocínio lógico de forma bastante produtiva e despertar o que poucos alunos brasileiros cultivam - o gosto pelas ciências. Se um número razoável dessas crianças decidir mais tarde seguir a carreira de professor de matemática ou de física, passando adiante o apreço pelos números e a curiosidade científica, teremos, enfim, um bom ponto de partida para almejar um ensino de alto padrão nas escolas. E não este que temos hoje, tão desinteressante.
Como tornar as aulas mais atraentes e eficazes?
A experiência das melhores escolas, no Brasil e no exterior, mostra que uma boa aula pressupõe desafiar os estudantes o tempo todo, de modo que eles sejam expostos a problemas cada vez mais complexos e estimulantes intelectual mente o avesso da decoreba. Apenas num ambiente assim se abre o espaço necessário para a inventividade. O problema é que muita gente no Brasil ainda resiste a essas ideias. Dizem que os grandes desafios causam pressão sobre estudantes tão jovens e aguçam a competitividade. Mas por que se opor à competição no ambiente escolar? Não faz sentido. Precisamos, repito, criar mecanismos para rastrear os talentos precoces para as ciências e dar-lhes todas as oportunidades e incentivos, como ocorre, há mais de um século, no mundo desenvolvido. É tarefa que demanda persistência, mas deve ser levada a cabo. Sem isso um país não tem como almejar aparecer entre os melhores nos rankings de produção científica e de inovação. Estamos falando de uma condição básica para equacionar o déficit de cérebros brasileiros voltados para a pesquisa científica.
O senhor acredita que o Brasil tem condições hoje de conquistar um Prêmio Nobel?
Para chegar lá, não basta ser brilhante nem apresentar um trabalho revolucionário. E também necessário pertencer a um ambiente intelectual mente virtuoso e inserido na pesquisa global. O Brasil está no caminho certo - mas é preciso acelerar o passo.
Fonte:http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=77556
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