05/08/2010 - 13:00 | Joana Monteleone | São Paulo
Google não entende os livros, diz historiador Robert Darnton
O historiador norte-americano Robert Darnton não apenas é um apaixonado por livros, mas também um dos maiores defensores de bibliotecas do mundo. Diretor do gigantesco acervo da Universidade de Harvard (EUA), o pesquisador fez carreira estudando o universo literário do Iluminismo e do Antigo Regime. Atualmente, ele está à frente de um ambicioso projeto de digitalização de acervos. “O ideal é colocar os livros gratuitamente na internet. E pensar nos pesquisadores, não apenas os do presente, mas os que virão”, explica Darnton.
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“Vai falar de novo sobre livros, querido? Prefiro esperar no saguão”, afirma a esposa do historiador, no saguão do hotel em São Paulo. E sobre livros Darnton falou por mais de uma hora: tratou do futuro das publicações, da ameaça do monopólio do Google e os problemas decorrentes das leis de direito autoral. Também comentou a nova pesquisa, as baladas revolucionárias cantadas na França iluminista. “Será meu próximo livro, sairá em formato convencional, mas as músicas estarão disponíveis no site da editora”.
Wikicommons
Darnton: brasileiros estão mais avançados na discussão do copyright do que norte-americanos
O pesquisador terá jornada dupla na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que começou ontem (4/8): ele participará de duas mesas que tratam do futuro do livro. Antes de viajar a cidade fluminense, ele conversou com Opera Mundi.
Na introdução de A questão do livro, o senhor fala que se trata de um livro sobre livros e uma apologia à palavra impressa. Então, qual seria o lugar do livro no ambiente digital?
Os livros sempre existirão, seja ao lado de versões impressas, seja em versões digitais. O que provavelmente acontecerá é que conviveremos com os e-books e com os livros tradicionais por um bom tempo ainda, talvez para sempre. Os livros digitais podem nos trazer novas formas de ler e fazer livros, mas a verdadeira revolução acontecerá não apenas com os leitores digitais, mas está acontecendo agora, no momento em que falamos, com bibliotecas inteiras sendo digitalizadas, transformadas em arqivo pdf e tornando-se disponíveis para leitores e pesquisadores. A internet é a verdadeira mudança e nós, em Harvard, estamos trabalhando para que isso aconteça. No entanto, é um processo caro e trabalhoso, que depende bastante de investimentos.
O senhor diz que esta é uma época de transição de tecnologia. Estariam os leitores de livros eletrônicos fadados a desaparecer diante da internet?
Já tivemos este problema antes. Ou seja, já tivemos problemas ligados à tecnologia de preservação do livro antes – e continuamos tendo agora. Nos anos 1960, o microfilme parecia ser capaz de resolver todos os problemas das bibliotecárias. E sabemos que elas em geral estão sempre preocupadas com a falta de verba e a falta de espaço para armazenar os livros. Logo, o microfilme parecia uma solução genial, poderíamos armazenar quantidades imensas de livros ou jornais velhos em poucas prateleiras.
Hoje, pouco mais de 50 anos depois, vemos que os microfilmes mofam, estragam com facilidade. Frequentemente são mal filmados e estão fora de foco. Também são péssimos de trabalhar. Tenho um amigo que pesquisava com um saco antienjôo de aviões ao lado. Além disso, eles são caros. Estima-se que nas últimas décadas as bibliotecas norte-americanas “livraram-se” de 975 mil livros a um preço de 39 milhões de dólares. Os livros descartados foram comprados por livreiros-antiquários por migalhas e revendidos a colecionadores por preços exorbitantes. Os microfilmes estão se estragando.
Muito já foi perdido com programas de computador que mudam com uma velocidade impressionante. Quem hoje tem um disquete? Os CDs já se tornaram quase obsoletos. Os livros, que diziam que iriam se esfarelar ou pegar fogo com o tempo ainda estão aí, mesmo os impressos em papéis ruins, como os da Biblioteca Azul da França. Por isso, às vezes é melhor deixar os livros em paz. Ainda assim, acho que a tecnologia pode resolver o problema da volatilidade de programas em breve. O pdf é uma prova disso.
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Livros impressos são pouco pirateados. O que pode acontecer em um ambiente digital?
Por toda a vida toda estudei o problema dos livros piratas, uma das questões que mais me diverte como pesquisador. Em Edição e Sedição (Companhia das Letras, 1992), analiso as edições pirateadas dos iluministas que circulavam na França pré-revolucionária. Rousseau teve livros piratas, Voltaire também, bem como Retif de la Bretonne, Marat ou até mesmo o Marquês de Sade. Era uma prática comum, mas ligada às tentativas de burlar o Antigo Regime. Edições pirateadas, como eram clandestinas, sofriam menos com as perseguições, apreensões e multas dos censores do que os livros impressos oficiais. E o sistema de copyright ainda não estava totalmente organizado, como o conhecemos nos dias de hoje. Então, algumas vezes, essas edições piratas eram as únicas de um determinado livro. Hoje a questão é outra, e as leis de direito autoral também. Então, se por um lado o copyright protege o autor e sua obra e isso é muito positivo, por outro, essas mesmas leis podem tornar sua obra inacessível, principalmente quando temos herdeiros envolvidos em disputas judiciais.
O senhor acredita que as leis que regulam o copyright podem atrapalhar o acesso ao conhecimento e educação? Não teriam essas leis se desviado da função de preservar a obra e o autor, para servirem a grandes corporações?
Sem dúvida. Nos Estados Unidos estão em jogo os lucros de Hollywood e Disney – indústrias poderosas. O copyright foi criando em 1710, na Grã-Bretanha, por meio do Estatuto de Anne. O objetivo era refrear as práticas monopolistas da London Stationer's Company, que reunia livreiros e editores. Na época, foi estabelecido pelo Parlamento que o copyright deveria durar 14 anos – um ano mais tarde, esse prazo pôde ser estendido. Eram 28 anos no total, com apenas uma prorrogação. As coisas foram mudando com o tempo e os prazos aumentando até que, em 1998, tivemos a Sonny Bono Copyright Term Extention Act, também conhecida como a Lei de Proteção a Mickey Mouse, porque o Mickey estava prestes a cair em domínio público e significaria um prejuízo de milhões de dólares à Disney. Então foi prorrogado o prazo dos direitos de copyright por mais 20 anos somando 70 anos após a morte do autor.
Na prática isso significa cerca de um século para uma obra entrar em domínio público. Se direcionarmos a sociologia do conhecimento para o presente, como fez Pierre Bourdieu, veríamos que vivemos num mundo criado por Mickey Mouse; selvagem e inóspito. Eu prefiro viver numa sociedade regida pelos princípios iluministas, em que o bem público estaria acima do lucro privado. Tentamos mudar as coisas, mas há um longo caminho. Por isso, acho saudável a discussão que o Brasil está tendo sobre os direitos autorais. Os brasileiros, em temas importantes, como é o caso da discussão do copyright, estão mais avançados que nós, norte-americanos.
Não gosto de pensar em sociedades sem livros … lembra-me, estranhamente, de uma cena do filme Fahrenheit 451, dirigido por François Trauffaut e baseado na obra de Ray Bradbury, em que o bombeiro Montag lia quadrinhos sem palavras na cama. A edição e publicação de livros impressos reúnem elementos proibitivos, têm a força de derrubar governos e fazer revoluções. Teriam os livros digitais o mesmo poder?
A internet tem um força incrível. Consegue espalhar informações para os quatro cantos do mundo, sem que a força de fronteiras detenha o poder avassalador da palavra escrita. Mas não estou tão certo quanto a projetos como o Google Book Search. Quantos livros o Google conseguirá digitilizar? Cinquenta porcento do que é publicado, ou mais? Ainda assim, o que ficará de fora? Obras importantes e raras, que serão inevitavelmente esquecidas por não terem sido digitalizadas? Sei que o Google emprega muitos engenheiros em suas unidades empresariais, mas entre seus quadros de funcionários não existe nenhum bibliófilo ou historiador de livros. Nada sugere que os algoritmos criados pelos engenheiros para organizar as edições digitalizadas funcionem, pois apenas os padrões ditados pelos pesquisadores, como qual é a melhor edição de determinado livro, ou qual foi a última edição que Voltaire, um autor conhecido por mexer sempre em suas edições (um pesadelo para os editores, sem dúvida) é a que ele considerava a melhor etc.
Pesquisadores sérios precisam estudar e cotejar muitas edições em suas versões originais e não em reproduções digitalizadas que o Google organizará de acordo com critérios que provavelmente não terão relação alguma com o saber bibliográfico. Mas, ainda que isso consiga ser feito, a materialidade dos livros ainda é fundamental. De acordo com uma pesquisa recente entre os estudantes franceses, 43% consideravam o cheiro como uma das características mais importantes de um livro impresso. Assim como o tato, tamanho. Faz diferença um livro impresso em tamanho grande, ou num pequeno duodécimo, projetado para ser segurado com facilidade. Os leitores digitais e pdfs colocam tudo num mesmo tamanho padronizado.
Na verdade, o argumento mais forte afavor do livro impresso é a eficácia com os leitores comuns. Graças ao Google, pesquisadores podem fazer buscas, navegar, garimpar, colher, minerar, acessar deep links e realizar crawls (os termos variam conforme a tecnologia) em milhões de websites. Ao mesmo tempo, qualquer pessoa em busca de uma boa leitura pode pegar um volume impresso e folheá-lo sem dificuldade, saboreando a magia das palavras na forma de tinta sobre papel. Talvez, algum dia, um texto numa tela portátil será tão agradável aos olhos quanto uma página de um códice produzido há dois mil anos. Enquanto isso não acontece, digo: protejam as bibliotecas.
Fonte:http://operamundi.uol.com.br/entrevistas_ver.php?idConteudo=100&utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter
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