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quarta-feira, 14 de julho de 2010

Literatura espanhola em nova leitura

14/7/2010

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – Na Idade Média, a poesia na Espanha já trazia elementos de modernidade. Mais tarde, nos séculos 16 e 17, três correntes coexistiam na literatura do país ibérico: a estética renascentista, o maneirismo literário – que corresponde à crise da Renascença – e o Barroco, que reunia traços de modernidade aliados ao pensamento conservador.

Essa visão crítica da história da literatura espanhola – muito mais caracterizada por processos de continuidade do que por simples rupturas – não será encontrada em nenhum manual de literatura. A perspectiva inovadora é a linha mestra do livro Leituras de Literatura Espanhola – da Idade Média ao século 17, de Mario Miguel González, lançado em junho.

De acordo com o autor, que é professor titular do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), o perfil do livro é indissociável de seu próprio percurso de leituras e pesquisas nos últimos 50 anos, que constituíram uma visão singular e crítica da literatura espanhola, em contraste com a visão dos manuais.

“Trata-se de um antimanual. Normalmente os manuais trabalham com uma periodização cronológica que nem sempre leva em conta o contexto histórico e sociocultural e desconsidera o diálogo ideológico. Com isso, perdem o sentido crítico ao percorrer a história da literatura. No livro, tratei de pinçar algumas obras e autores, de acordo com um critério muito particular que serviu para a análise desses processos”, disse González à Agência FAPESP.

O autor nasceu na Argentina e se graduou em Letras pela Universidade Católica de Córdoba em 1963. No Brasil, fez mestrado e doutorado na USP, obtendo a livre-docência em Literatura Espanhola em 1993.

Segundo ele, o livro é voltado especialmente para estudantes de literatura espanhola de graduação e pós-graduação, mas poderá também ser útil a professores e ao público interessado no tema, uma vez que os ensaios têm sequência na exposição e se referem a diversos autores do período estudado. A obra teve apoio da FAPESP por meio da modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações.

González destaca que, no caso de muitos países europeus, a literatura relevante tem início na Renascença. Mas o mesmo não vale para o caso espanhol. “A abrangência cronológica remete ao que se considera o período de formação da literatura espanhola – a partir da Idade Média, que na Espanha tem papel fundamental – até o seu auge no século 17. No caso espanhol, o período medieval é crucial devido ao próprio processo histórico da nação, que se fundamenta na construção do herói, tanto na literatura erudita como na popular”, explicou.

A figura do herói, levada à idealização máxima no início da Renascença, logo se tornaria objeto de paródias. “Quando voltamos às paródias feitas sobre esse herói – como é o caso de Don Quixote –, podemos ver o nascimento do romance como forma moderna de narrativa”, disse.

No livro, de acordo com González, o leitor encontrará uma perspectiva mais crítica do que nos manuais, embora eles também se refiram normalmente a um determinado período da literatura, além de uma valorização distinta das escolas e períodos.

“Não me refiro, por exemplo, à literatura espanhola dos séculos 16 e 17 como a produção dos ‘séculos de ouro’. Essa nomenclatura achata e uniformiza elementos de um processo que é extremamente complexo. Prefiro trabalhar com algo que os manuais não dão conta de abordar, que é a existência de três correntes estéticas coexistentes entre os séculos 16 e 17”, afirmou.

A primeira corrente é a Renascença, caracterizada pela poesia lírica e pelas novelas de cavalaria. A segunda, na leitura de González, o “final brilhante” da estética renascentista: o Barroco. Paralelamente às duas correntes que coexistem, há uma terceira que o autor denomina de “maneirismo” – conceito extraído das teorias de Arnold Hauser (1892-1978) e aplicado à literatura por González –, que corresponde a uma crise da Renascença.

“É exatamente nessa crise da renascença que se encontram as raízes da modernidade. A modernidade consolidada no século 19 seria apenas o coroamento de uma estética que cresceu a partir da crise renascentista. É aí que a literatura espanhola apresenta aspectos modelares, confirmando-se como nascedouro do romance. Temos a poesia lírica de autores como frei Juan de la Cruz (1542-1591) ou Luis de Góngora (1561-1627), que trato como poetas modernos. Temos também um teatro que já dá sinais de modernidade em obras do fim da Idade Média, como La Celestina, atribuída a Fernando de Rojas (1465-1541)”, explicou.

Para González, não é a cronologia que determina o sentido de modernidade de um texto e sim os fatores estéticos. “O fator determinante é a construção do leitor. São textos que pedem um leitor atuante e crítico, que deve construir os sentidos em vez de se aceitar a passividade. Nos ensaios, procuro mostrar as raízes modernas na crise da renascença, que atinge um homem que já não é o homem clássico. Nessa crise, já se constroem formas de expressão que são a raiz de uma modernidade”, disse.

No livro, a fim de poder trabalhar os textos como fatos históricos, o autor procura contextualizar o leitor apresentando em primeiro lugar uma síntese da história da Espanha da Idade Média ao século 17. Em seguida, apresenta um resumo da literatura daquele período, trabalhando com textos medievais em busca de vestígios da construção da modernidade.

“Além da lírica popular medieval, que apresenta fatores de modernidade, vemos também que o conto – um gênero moderno – já nasce no século 14 na obra de alguns autores espanhóis. Junto com isso, basicamente a partir da poesia épica e suas transformações populares, vou buscando delinear a construção do herói”, disse.

Mas, ao mesmo tempo em que surgia o herói, já aparecia a crise, segundo González, no fim da Idade Média, em textos que iriam formar o que se chama de romanceiro. “A herança dessa crise teve reflexos até mesmo na literatura do Nordeste brasileiro. Aquele romanceiro era trabalhado a partir de personagens heróicas, mas revelavam uma angústia existencial que já pertence ao homem moderno”, afirmou.

Em contraste com essa crise no fim da Idade Média, alguns autores apresentam uma resposta para as angústias existenciais, sem apoio em elementos religiosos.

“Temos poemas magistrais, como Coplas por la muerte de su padre, de Jorge Manrique (1440-1479), que enxerga a resposta na existência humana como um fato transcendente. Essas duas maneiras de ver a realidade iriam dialogar de maneira muito forte nos séculos 16 e 17”, apontou o professor da FFLCH-USP.

Nova classificação

A visão crítica proposta por Leituras de Literatura Espanhola permite, segundo González, compreender determinados autores com os quais os manuais são incapazes de lidar, por não saberem onde encaixá-los em sua escala cronológica rígida.

“Eles utilizam divisões ideológicas que querem ter algum sentido estético, mas não dão conta da dinâmica literária. O caso de La Celestina é emblemático. Os manuais colocam esse texto entre a Idade Média e a Renascença, o que faz sentido cronologicamente. Mas eu o coloco entre os modernos, por ser uma obra que antecipa a crise da burguesia, que na Espanha seria muito profunda”, disse.

Aqui, mais uma vez, aspectos históricos, sociais e políticos se refletem sobre a literatura. González conta que, diferentemente do modelo social português do século 16, essencialmente burguês, o modelo que se implanta na Espanha é o de cavaleiros conquistadores.

“A burguesia da Espanha nasce morta, com a formação de um modelo social pronunciadamente antiburguês. A conquista da América hispânica, por exemplo, é uma atividade de cavaleiros medievais, em contraste com a aventura burguesa da colonização do Brasil. Tudo isso precisa ser considerado quando tratamos da literatura desse período”, disse.

Alguns casos fogem claramente ao achatamento dos manuais, como o romance anônimo Lazarillo de Tormes, uma espécie de ilha literária. “É um pequeno romance perdido no meio do século 16, contrastando com a narrativa idealizada dos livros de cavalaria da época e antecipando o romance picaresco do século 17”, disse.

Outro caso exemplar é Don Quixote, de Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), escrito na virada do século 16 para o século 17. “Para os manuais, a literatura do século 16 é renascentista e a do século 17 é barroca. Mas Don Quixote não é uma coisa nem outra. Ele se encaixa naquela crise da estética renascentista que produziria a modernidade”, disse.

Entre os grandes autores da poesia lírica espanhola, San Juan de la Cruz é invariavelmente catalogado como poeta místico. González apresenta uma visão mais crítica dessa classificação.

“Dizer que essa poesia é mística equivale a forçar uma única leitura do texto, como poesia de sentido religioso. Estabelecer esse sentido único é uma forma de anular o poema. Na verdade, San Juan de la Cruz escreve uma poesia de temática amorosa que se aplica a qualquer forma de amor, religioso ou não”, afirmou.

Góngora, segundo González, é frequentemente encaixado na corrente do barroco conhecida como “culteranismo”, voltada para o jogo de palavras e rebuscamento da forma. “Na realidade o termo ‘culteranismo’ foi inventado por inimigos de Góngora e tinha grande carga estigmatizante, a partir de uma analogia com ‘luteranismo’, remetendo a uma heresia e, por extensão, à origem religiosa incerta do poeta, presumivelmente judaica”, afirmou.

A característica do universo barroco espanhol, entremeado por elementos de modernidade, também se estenderia ao teatro. “O teatro clássico espanhol é profundamente marcado por um pensamento barroco – e me refiro aqui a um pensamento da contrarreforma. No entanto, esse teatro é formalmente uma ruptura radical com a perspectiva renascentista. É de uma modernidade impressionante em relação às unidades de tempo, ação, espaço e mistura de gênero. O teatro dá lugar à aparição de personagens extremamente modernas, como Don Juan, que analiso como um mito de poder”, disse.

* Leitura de Literatura Espanhola – da Idade Média ao século 17
Autor: Mario Miguel González
Lançamento: 2010
Preço: R$ 59
Páginas: 478
Mais informações: www.letraviva.com.br
Fonte:http://www.agencia.fapesp.br/materia/12460/literatura-espanhola-em-nova-leitura.htm

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