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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Pequeno, mas levado a sério - Teoria e Literatura Infantil

Um dos principais estudiosos dos livros dedicados a crianças, o britânico Peter Hunt - de quem chega ao País Crítica, Teoria e Literatura Infantil - fala [br]sobre o gênero e discute seu futuro na era da internet
28 de agosto de 2010 | 0h 00

Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
Nos congressos de profissionais ligados ao livro para crianças, as sessões menos concorridas são as que apresentam conferencistas falando sobre teoria e crítica, diz o estudioso inglês Peter Hunt, de 65 anos, uma autoridade em literatura infanto-juvenil, cujo livro Crítica, Teoria e Literatura Infantil acaba de ser lançado no País pela Cosac Naify. Hunt, professor emérito da Universidade Cardiff, pai de quatro filhas, todas grandes leitoras incentivadas por ele, conta que escreveu a obra numa época em que um "maremoto de teorias" cobria as estantes das bibliotecas universitárias britânicas, isto é, no começo de 1990, sete anos antes do fenômeno Harry Potter, que não entraria na lista dos favoritos do professor - ele gosta mais de Rudyard Kipling, Quentin Blake e Arthur Ransome. Hunt, aliás, escreveu seu livro justamente para acabar com a crítica intuitiva e vaga de gente que considera a literatura infantil simples e inferior à destinada ao público adulto.

O professor também sempre desconfiou de pedagogos que lhe recomendavam não deixar os livros para criança cair nas mãos dos departamentos de literatura das universidades, assumindo uma injustificável posição anti-intelectual. Há algo errado com acadêmicos que não consideram a teoria da literatura infantil digna de nota, observa. Esse anti-intelectualismo, diz ele, ultrapassa a fronteira acadêmica para dominar até mesmo as associações e federações de livros para crianças, que influenciam as compras governamentais de obras destinadas a escolares, funcionando às vezes como censores - é histórico o caso da ilustradora alemã Rotraut Susanne Berner, que há três anos, por sugestão de seu editor americano, recusou retirar de seu livro infantil a figura de um homem nu, tendo a publicação suspensa. Num país como o Brasil, em que o governo compra um em cada três livros vendidos pelas editoras, pode-se imaginar as proporções do desastre comercial dessa interferência.

Cânone. Hunt não chegou a publicar seu cânone da literatura infantil, como o fez nos anos 1980 a Associação Americana de Literatura Infantil. Não que ele seja inútil, argumenta. Pode ajudar a bibliotecários sob pressão, mas um cânone é sempre restritivo. Impede justamente uma escolha mais criteriosa, sugerida por princípios teóricos básicos. Hunt quer ser o homem que sugere como funcionam os textos para criança e como entendê-los. Parece natural que, instigado a fornecer sua lista de autores básicos, Hunt cite Lewis Carroll, Tolkien ou Roald Dahl, mas também inclua Oscar Wilde e Virginia Woolf, autores associados automaticamente à literatura adulta, embora tenham escrito textos destinados a crianças.

"Algumas das opiniões expressas na primeira edição do livro mudaram, naturalmente, porém mantive o tom polêmico para confrontar ideias que estão muito solidificadas entre os universitários, público ao qual me dirijo", diz Hunt, para quem a literatura infantil é um laboratório para as teorias literárias. Ele compara, por exemplo, um nome clássico de séculos passados, Jane Austen, com a americana Judy Blume (de Desventuras De Um Irmão Mais Velho, publicado pela Salamandra em 2006), que já tratava de sexo em livros infantis nos anos 1970, concluindo que a segunda talvez tenha influenciado mais gente que a autora de Orgulho e Preconceito (1813). Hunt defende Blume, ainda que tenha lá suas restrições a respeito de outros escritores ousados e suas subversões temáticas - como a italiana Susanna Tamaro, que trata das observações de uma octogenária sobre repressão feminina em conversa com a neta no pouco convencional Vá Aonde o Seu Coração Mandar (Rocco, 2007).

Polêmica. A mesma editora de Hunt no Brasil, a Cosac Naify, publicou há três anos um livro infantil polêmico que abordava a homossexualidade, Meu Amigo Jim, da belga Kitty Crowther. A editora Isabel Lopes Coelho justifica a importância da publicação, sobre dois pássaros gays que se amam, uma gaivota (Jim) e um melro (Jack), que têm de enfrentar o bico torto de suas respectivas turmas: "Vamos atrás de temas pouco abordados justamente por não ver fronteira entre literatura para crianças e adultos." Hunt trata do assunto no terceiro capítulo de seu livro, afirmando que "nossas referências e intenções são decisivas" no processo de leitura. Quando os adultos leem livros para criança, observa, o fazem como se esses textos fossem escritos para gente grande. Um texto, defende, deve "implicar" um leitor. Um adulto lê Roald Dahl com o mesmo prazer de uma criança porque o "público implícito" é tanto adulto quanto infantil.

"Claro que não sabemos como uma criança lê, se ela o faz como uma experiência literária ou funcional, mas não vejo razão para que os livros de criança recebam menos atenção que uma obra de Shakespeare." Um olhar adulto nem sempre é perfeito para decretar o que vale ou não. Crianças, diz, diferem da norma e isso é o que faz a literatura infantil transgredir sempre. Mesmo não dispondo de instrumentos para analisar a linguagem dos livros, a fantasia da criança é maior, insubordinada.

Um clichê que ele vê finalmente excluído em nossa época, de autores transgressores como Kitty Crowter, é aquele que supõe ser o final feliz desejado pela criança. Ele não é garantia que a obra vá exercer alguma influência positiva sobre ela. "Claro, não acho uma boa ideia escrever sobre doenças terminais para o público infantil", responde, ao se referir a livros como Vovô Esqueceu Meu Nome, de Nancy Grünewald, sobre um ancião que sofre do mal de Alzheimer. "No entanto, como contar a uma criança sobre o trágico episódio da bomba atômica de Hiroshima?", pergunta. "Devemos ou não escrever sobre o assunto?" Hunt parece concordar com o acadêmico e terapeuta australiano Huch Crago, defensor da tese de que roteiro, personagem e tema não têm tanta importância quando se discute a experiência literária da criança, que não seria afetada por um final feliz ou escapista. Numa primeira fase de desenvolvimento, alerta Hunt, a criança de fato prefere uma história com desfecho e que a normalidade seja restabelecida. "Os clássicos seguem essa norma, particularmente os vitorianos", acrescenta. "Mas, em tempos de internet, quando a criança pode interferir nas histórias, controlar o que lê e até mudar um roteiro, a autoridade do autor não é mais a mesma."

Interação. Hunt é um entusiasta do célebre ensaio de Roland Barthes sobre a "morte do autor", em que o francês critica o método de leitura analítica baseado na identidade do escritor. Contra a tirania da interpretação baseada no contexto histórico e na biografia do autor, ele diz que as novas mídias eletrônicas não estão apenas alterando o modo como se conta uma história, mas a própria natureza da história. A internet pode não ter ainda encontrado seu equivalente do romance, contudo alterou drasticamente o modo de leitura das crianças - um tanto fragmentado, cubista, associativo. Antes, só havia a tradição oral e a linguagem escrita. Hoje existe a hipermídia, esse monstro híbrido que subverte a estrutura narrativa. A construção interativa, segundo ele, dá razão ao visionário Barthes: ela depende mais da impressão do leitor do que da intenção do escritor. Em seu livro, Hunt foge da crítica especulativa e da psicanálise do autor como o diabo da cruz.

Se o escritor britânico Roald Dahl (1916-1990), autor de A Fantástica Fábrica de Chocolate, faz tanto sucesso com crianças de todas a gerações é justamente porque o autor produziu obras que refletem o ponto de vista anárquico - ou moderadamente subversivo - de seus pequenos leitores. "Crianças pertencem à contracultura", define Hunt. Mas Roald Dahl e a citada Judy Blume não estariam impondo seus princípios pessoais a comunidades de leitores hostis a esses princípios? Aí entra Hunt citando As Viagens de Gulliver. Por que Jonathan Swift teria colocado Gulliver para conversar com o rei de Brobdingang, a terra dos gigantes, sobre um assunto tão incômodo como homens que nutrem opiniões polêmicas capazes de envenenar seus semelhantes?

"Não dá para ser simplista numa questão dessas, mas também não dá para aceitar a linguagem uniformizada que o mercado editorial pretende impor às crianças de hoje", critica, referindo-se aos simulacros de Harry Potter que inundam o mercado há mais de uma década. São os críticos, segundo ele, os culpados por criar um cenário intelectual propício à produção de textos imitadores da saga de Harry Potter escrita pela britânica J. K. Rowling. A escolha das crianças apenas segue a ideologia de quem escreve sobre literatura infantil. Nem mais, nem menos. Ontem foi Harry Potter. Hoje são vampiros assexuados.

Hunt desconfia que uma nova onda moralista, traduzida na revisão de clássicos, vire um tsunami, considerando as "adaptações" que editoras inglesas encomendam a autores de best sellers como Pedro Coelho, de Beatrix Potter (cuja versão original com os desenhos da autora foi lançada no Brasil pela editora Lótus do Saber). Ele lembra que a escritora, morta em 1943, chegou a ser procurada por um editor que lhe sugeriu reescrever seu livro com "palavras simples o bastante para uma criança entender". A réplica de Beatrix não foi muito educada. Ela, a exemplo de seus leitores, preferiu a anarquia de seus coelhos infernizando a vida de seu Gregório, o horticultor.

Fonte:http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100828/not_imp601563,0.php

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