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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A FILA DA ESPERANÇA

Fonte: Isaac Roitman(*), Correio Braziliense de 05.11.2010
Ao passar recentemente por uma lotérica, chamou-me a atenção uma longa fila. Em poucos segundos consegui uma explicação. A Mega-Sena estava acumulada e pagaria mais de R$ 100 milhões. Imaginei um nome para essa fila e o que veio primeiro foi “a fila da esperança”, provavelmente inspirada na frase de Rubem Alves que diz: “A esperança é uma droga alucinógena”.

A cena me estimulou a fazer várias reflexões. A primeira era que aqueles que ali estavam, assim como milhões de pessoas em milhares de outras filas deste país continental, alimentavam um grande sonho. Se o prêmio fosse de R$ 10 milhões, o sonho seria menor e a fila, mais curta. Sonhar grande é uma grande virtude. É pena que nem sempre isso ocorre com as pessoas que dirigem o país, os estados e os municípios.

Felizmente temos exceções, como Juscelino Kubitschek, que sonhou e construiu Brasília. Concluí então que os brasileiros, e provavelmente todas as pessoas do planeta, têm um potencial latente de sonhar grande, que pode ser estimulado, como no caso, pela magnitude do prêmio. O país só será grande se os sonhos de seus habitantes forem grandes e ousados.

Voltemos aos personagens da “fila da esperança” na lotérica. Certamente, os apostadores estavam em devaneio, mergulhados em fantasias e liberando a imaginação para voar com liberdade em espaços desconhecidos. Sonhavam com uma sobrevivência garantida sem a necessidade de trabalho compulsório, uma vida farta e confortável, entulhada com os avanços tecnológicos, com uma agenda de viagens luxuosas, com acúmulo de bens e outros tantos valores que a cultura consumista nos é imposta de forma permanente.

Até o anuncio dos números sorteados, essas pessoas teriam a ilusão de nova vida, imaginando cada um deles a conquista de anseios e desejos íntimos. No entanto, em nenhum momento essas pessoas descortinaram alguns elementos importantes de um possível cenário, caso ganhem o prêmio de R$ 100 milhões. Elas teriam que discernir se as pessoas que a partir daí vão lhes procurar estão ou não atraídas pela nova condição milionária.

Elas não percebem que não poderão mais circular nos ambientes públicos como simples mortais. Terão de ser acompanhados por seguranças e fazer uso de transportes blindados. Não percebem que pouco a pouco vão perder o encanto do anonimato. Elas esquecem os assassinatos de ganhadores de grandes prêmios na Mega-Sena, como os ocorridos em 2005, em Rio Bonito, e em 2008, em Limeira, e não lembrarão notícia recente sobre a prisão de um pai que teria matado o filho, ganhador de grande prêmio em 2006. Não percebem que a realidade pode ser muito diferente dos devaneios de um futuro confortável e de uma escravidão ao hiperconsumo.

E se o prêmio fosse de R$ 10 milhões? Menos mal. O ganhador passaria quase despercebido. Essa quantia provavelmente resolveria suas necessidades básicas de conforto sem os problemas que emergem nos ganhadores de prêmios polpudos. Estou convencido de que, mesmo lendo as considerações feitas, diante da pergunta se preferia ganhar R$ 100 milhões ou R$ 10 milhões, a maioria responderia: cem milhões. Não é tarefa fácil nos libertarmos dos ditames culturais arraigados na profundeza de nossas almas.

O consumismo infantil e do adolescente, assim como a vaidade, são impostos a cada momento. O consumismo chegou a níveis insanos no mundo, aumentando a demanda por matéria-prima, a produção de lixo, comprometendo o equilíbrio do meio ambiente. Também não é tarefa fácil rompermos com as estruturas sociais ditadas e perpetuadas há séculos. Quem sabe, possamos presenciar um dia uma gigantesca fila, com milhões de participantes, como se fosse um rolo compressor, com um grande sonho de uma conquista de uma justiça social plena e em que os anseios de cada um possam ser concretizados. A crença de que o ser humano é uma espécie bem-sucedida na natureza seria a melhor estrada para construirmos uma humanidade mais virtuosa. Nesse dia, não teríamos a necessidade de lançar mão de artefatos que prometem ilusões. Nesse dia, as filas da esperança seriam folclores do passado.

(*)Isaac Roitman, Membro titular da Academia Brasileira de Ciências

Fonte:http://www.sbpcpe.org/index.php?dt=2010_11_11&pagina=noticias&id=06086

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