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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Datar para perenizar




Nada mais intrigante do que receber um documento sem data. Nos centros de memória, documentação, informação ou em bibliotecas, muitas vezes nos deparamos com documentos textuais ou bibliográficos sem nenhuma menção à sua localização na escala do tempo.

Vale lembrar que atemporal se refere ao que transcende o tempo, sem necessariamente pertencer ao passado, ou ao presente, ou ao futuro. É uma propriedade de seu conteúdo, não do documento. Não quer dizer sem data, sem registro temporal na linha de acontecimentos mundiais. Sem referência ao período histórico no qual foi produzido.

Na primeira vez em que cataloguei um livro sem data, muitas perguntas vinham à minha cabeça: Quem produz um livro sem data? Em que contexto temporal aquelas informações foram compiladas? Com receitas, de imagens, com depoimentos, livros históricos, mesmo que fosse um livro de um único leitor - o autor - tem que ter data. Os conceitos que temos em nossa sociedade hoje, não são os mesmos de gerações anteriores, influenciando a seleção e redação dos textos em cada época.

Por exemplo, folders institucionais das décadas de 1960, de 1980, descrevem ações e possuem conceitos bem diferentes das responsabilidades atribuídas às empresas no século XXI. Catálogos de produtos que ainda são comercializados podem apresentar fórmulas com substâncias proibidas pela legislação em voga. É claro que não tomaremos como verdade absoluta esses documentos sem antes confrontá-los com fontes legítimas. No entanto, se forem utilizados por usuários leigos, sem orientação, podem criar problemas grandes e arranhar a imagem institucional.

Quando recebia bilhetes, apresentações, relatórios, fotos e outros documentos sem data nos centros de documentação e memória, acreditava que deveria ter sido um descuido de quem o produziu. Como alguém redige um relatório e não inicia ou finaliza com a data em que aquele condensado de dados foi produzido? Os resultados serão diferentes se o mesmo for feito ao meio e ao final da ação?

Sempre coloco a data, pelo menos o ano, nos cartões de aniversário entregues para colegas de classe, do trabalho, ou em presentes coletivos. Tenho certeza que daqui a alguns anos iremos pegar esses cartões e, sem a data, teremos que fazer um backup mental para relacionarmos as assinaturas ao período cronológico a que elas se referem.

Muito além das questões afetivas, onde pode até ser gostoso passar horas lembrando do contexto histórico dos nossos cartões, a problemática dessa ausência temporal nos documentos empresarias é muito mais complexa.

Os documentos de caráter arquivístico, em sua maioria, têm estrutura padronizada e possuem dados explícitos como origem da produção, data, produtor, função e outros critérios observados pela Diplomática. Isso facilita o trabalho de quem irá realizar a descrição do documento e, principalmente, do usuário que o utilizará posteriormente.

Com as novas tecnologias da informação e comunicação, documentos são produzidos a todo instante e muitos deles, com propriedades de documentos históricos, irão para os centros de memória. Porém, nem sempre o registro é produzido com o rigor necessário à sua posterior identificação, gerando dúvidas e até desconfianças quanto a sua autenticidade. O registro da data em que o documento foi produzido pode ser identificado pelos metadados dos documentos digitais e virtuais, entretanto a transferência para outro suporte ou espaços virtuais pode alterar esse dado.

Sem a data em que foram produzidos os documentos a tarefa de contextualizá-los fica complexa e pode incorrer em erros. Os historiadores precisam de fontes confiáveis para que possam reconstruir o percurso histórico de uma organização o mais aderente possível aos fatos passados. Os documentos são fonte primordial desse levantamento histórico e podem levar a interpretações parciais de acontecimentos, comprometendo o entendimento da trajetória institucional.

A atribuição de informações externas ao documento, como data, por exemplo, é normalizada por códigos e regras para que fique claro que a informação “data” não é original do documento e sim atribuída para sua melhor descrição. As fontes utilizadas para extrair a informação, também são contempladas por normas para que a atribuição tenha seus critérios uniformes.

Até em um recado telefônico a data é importante fonte para tomada de decisão, de prioridade. No momento em que o documento está sendo redigido, sua função primaria é registrar e transmitir informação, podendo se tornar base para reflexão histórica, contextual. Pode parecer um detalhe, minúcias, quase uma obsessão em controlar o tempo. Trata-se apenas de possibilitar que mais documentos possam ser fontes fidedignas de registro histórico para as próximas gerações.

Em nossa sociedade acelerada, repleta de alterações de tempos e movimentos acredito que será cada vez mais necessário esse registro permanente, para que possamos marcar nossa existência sem sermos engolidos pelo buraco negro do tempo.

Fonte:http://www.aberje.com.br/acervo_colunas_ver.asp?ID_COLUNA=387&ID_COLUNISTA=35

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